O Homem Que Acordou em São Paulo - Parte II
- Meus médicos sempre foram caros e bons, abriram meus olhos... Confesso que foi complicado.
-E? - perguntou Pedro.
- Meu mundo não mudou, está tudo cinza, mais cinza que São Paulo... Eu acho que é por isso que esse lugar é branco.
Pedro riu, e disse:
-Não é por isso. Aqui, de certa forma, é um hospital, portanto é preciso mantê-lo higiênico, a fim de preservar a saúde dos pacientes. - respondeu Pedro.
- Eu sei disso, seu otário. - disse Maria, séria.
Neste momento, Pedro se apaixonou por ela.
- Fale um pouco sobre seu mundo cinza. - disse ele, atencioso.
- Pois bem. Tenho bons médicos e sinto que estou me acostumando com o cinza. Estou descobrindo que ser diferente não é subversivo, anormal e que ninguém pode me bater por isso, como os meus colegas faziam, e como meu pai fez quando descobriu que eu não queria estudar. - disse Maria.
- E o que você fazia? - perguntou Pedro.
- Como assim? - perguntou Maria.
- Você passou vinte e oito anos fazendo o quê? - perguntou Pedro.
- Eu gosto de ler. - respondeu Maria.
- O que você lê? - perguntou Pedro.
- Eu leio de tudo... Venha, vou mostrar meus livros. - disse Maria andando à frente de Pedro, para que ele a seguisse.
Subiram uma ladeira branca com corrimão de alumínio, até chegar em um corredor cheio de portas. Praticamente tudo era branco.
- É onde eu vivo. - disse Maria abrindo uma das portas brancas.
- O que você acha? - perguntou Maria.
-É diferente do resto do sanatório. Quer dizer, o sanatório é todo branco...Aqui têm livros com capas coloridas, espalhados por todo o canto. Roupas suas no bidê, outras no chão...
Maria riu para Pedro.
- Eu concordo. Têm um pouco de mim aqui. - disse ela.
- Fique à vontade. Desculpa, aqui não têm cadeira, só o "puff" - disse ela apontando para o "puff", uma imenso travesseiro de lona vermelha, com um formato que propicia o conforto, misto de cama e cadeira.
Pedro sentou no "puff''
- É confortável - disse ele.
- Tem livros vários clássicos da literatura aqui, além de livros teóricos... Porque não fez Literatura? - perguntou Pedro.
- Por que eu faria Literatura, se os livros estão aqui? - disse Maria.
Pedro pôs as mãos em uma espécie de caderno.
-Não mexa nesse, é meu diário. - ordenou Maria.
- Por quê não? - perguntou Pedro.
Maria hesitou um pouco, depois disse:
- Foi a segunda coisa sensata que você me disse, Pedro. - disse Maria.
Pedro abriu o diário. No centro da primeira página estava escrito:
"Este diário é a minha vacina contra o mundo, com ele nunca estarei perdida."
Pedro sentiu o coração bater. Sintoma de paixão.
"Quem está perdido sou eu" - pensou ele
- Você está perdido, Pedro? - perguntou Maria.
Pedro assustou-se.
- Como assim, o quer dizer com isso? - disse Pedro, com medo de Maria ter percebido algo do que ele estava sentindo.
- Como assim? - insistiu Pedro.
- Não é culpa sua. Todo mundo está perdido nessa cidade.
- O que você quer dizer? - disse Pedro sentindo-se exposto.
- Está tudo tão cinza que ninguém enxerga ninguém. A fumaça deixou todo mundo doente e triste, fechados em seus mundos..Cada vez mais ocupados, cada vez mais atrasados...Cada vez mais animais, esbarrando uns nos outros, xingando uns aos outros. - disse Maria, olhando para Pedro com profundidade.
- Deve ser por isso que você nunca transou com ninguém. - disse Pedro, tentando proteger tudo o que sabia da vida até então.
- Foi a terceira coisa sensata que você disse, Pedro. - respondeu Maria
- Você me deixa com medo. Você me confunde. Uma pessoa nas suas condições não deveria me confundir. Além disso você é jovem, não sabe nada da vida. - disse Pedro agressivo.
Pedro esperou que a menina se comovesse com suas brutas palavras. Mas Maria continuou a olhar para Pedro, com tanta segurança, convicção e firmeza, que subitamente ele sentiu-se invadido, inseguro e perdido, como uma criança.
O homem da Empresa chorou.
Muito.
Maria, levantou se da cama, ajoelhou-se e abraçou-o. Sentou no puff e pôs a cabeça de Paulo em seu colo. Como uma mãe, acariciou seus cabelos para aliviar seu sofrimento.
- Não é nada, Pedro. Você só está perdido... Tudo vai ficar bem! Eu sei como você se sente, me senti assim por muito tempo... - disse Maria
- Desde quando? - perguntou Pedro.
- Você já sabe, desde quando entrei para a escola. - disse Maria.
- Eu tenho cinco anos de idade. - disse Pedro.
- Não. Você acaba de nascer - disse Maria beijando-lhe a testa.
Ali permaneceu Maria, acariciando o filho a quem deu a luz. Ficaram ali por três horas.
-Conte-me da mulher que você amou - perguntou Maria.
- O nome dela é Judite. - disse Pedro chorando.
- Onde ela está agora? - perguntou Maria.
- Eu não sei. A cidade está vazia. - disse Pedro.
- Pergunga boba a minha. - riu Maria.
- Não - disse Pedro puxando a mão de Maria para si e beijando-a, e depois deixando-a deslizar suavemente para o lugar onde a mão estava em seus cabelos.
- Me fale da primeira vez em que fizeram amor. Quando foi? - perguntou Maria.
- Foi no dia do aniversário dela, éramos amigos de Faculdade... Fizemos uma festa surpresa para ela, faltamos aula e compramos o bolo, as bolas. Fizemos cartazes...
- Não imagino você matando aula. - ironizou Maria.
- Você me conhece muito, Maria - disse Pedro.
- É fácil conhecer uma pessoa quando se presta um pouco de atenção nela. Mas diga, você escreveu algum cartaz? - disse Maria.
-Sim. - respondeu Pedro.
-E o que dizia? - perguntou Maria
- Feliz aniversário! Eu te amo, Judite! - disse Pedro.
- Criativo.- disse Maria
-Sim. Tinha várias pessoas lá, ela não saberia que era eu. - disse Pedro.
- Pelo jeito ela acabou sabendo. - disse Maria.
Os dois sorriram-se.
- Continue. - disse Maria
-O que? - perguntou Pedro.
- O que aconteceu durante a festa? - perguntou Maria.
- Durante a festa eu não bebi. Deixei que todos bebessem, e disse para Judite que não bebesse. Ela perguntou por quê. Eu disse que só iria dizer depois. Ela sorriu, acho que já imaginava. - disse Pedro.
Paulo sorriu, e continuou:
- Bem, quando todos estavam caídos no chão e só restavam Paulo e Roberta transando na escada, eu e ela estávamos sentados no sofá, relaxados, tinhamos rido bastante dos bêbados. Ricardo havia subido na mesa de Judite e começado a tirar a roupa. Conseguimos impedir que ele tirasse a cueca. - disse Pedro.
Pedro e Maria riram.
Pedro continuou:
- Eu fui até a parede, descolei o cartaz que eu tinha feito, e voltei com ele aberto. Ela levantou do sofá, se aproximou, e me beijou.
- O que você sentiu? - perguntou Maria.
-Eu me senti a dez centímetros do chão, em outro mundo, minhas mãos suavam... - disse Pedro
-E? - perguntou Maria.
- Ela pegou a minha mão e me puxou para o quarto dela. Foi o momento mais feliz da minha vida. - disse Pedro.
- Não vou perguntar mais, pode deixar - disse Maria sorrindo.
-Deixe eu ficar aqui, não me abandone, ainda me sinto fraco. - disse Pedro.
- Vou ficar aqui o tempo que precisar. - disse Maria.
Maria acariciou levemente o cabelo de Pedro até que ambos dormissem.
Na manha seguinte, Pedro acorda deitado no colo de Maria, exatamente como na noite passada, exceto que Maria "tombou" para trás, ajeitando-se como pôde no puff, e seu ventre acabou servindo de travesseiro para Pedro.
Pedro a pega com cuidado e a deita na cama branca. Depois de levantar a cabeça de Maria para pôr o travesseiro, a mesma abre os olhos cansados.
- Durma, Maria. - disse Pedro.
- Vá encontrar Judite - disse ela, bêbada de sono.
- Essa foi a coisa mais sensata que você já disse. - disse ele, sorrindo para ela.
Maria não ouviu, pois dormiu tão rapidamente quanto acordou.
Pedro saiu do quarto, atravessou o corredor branco, desceu a rampa com corrimão de alumínio, atravessou a enfermaria e ao chegar no pátio deparou-se com alguns enfermeiros.
Um idoso, sentado em uma cadeira de plástico, no portão do sanatório, ao perceber que um homem de cueca saía do prédio, gritou:
- Lúcia!! Segura esses doido!!
Pedro correu para dentro do prédio, porém, logo a entrada encontrou um enfermeiro que o impedisse de subir. Sem resistir , e com as mãos imobilizadas pelo enfermeiro, que o seguia logo atrás.
- Não precisa me segurar, eu não vou fugir.
O enfermeiro não respondeu, como se Pedro não existisse. Ninguém dá ouvido aos loucos que vestem apenas uma cueca rasgada. Se Paulo ao menos estivesse com seu terno, aquela cena poderia ser evitada.
Chegando a enfermaria , dois enfermeiros ao perceberem os passos do policial, olharam sérios para o ridículo louco de cueca rasgada.
- Aqui está. - disse o enfermeiro, entregando o pacote de loucura.
- Você o conhece? - perguntou o enfermeiro.
Os enfermeiros entreolharam-se. Ninguém conhecia o louco.
- O que faremos? - perguntou um dos enfermeiros.
- Olhe as fotos nas fichas, idiota. - disse um enfermeiro.
-Temos mais de trezentos pacientes, idiota - rebateu o outro enfermeiro.
- Sou amigo de Maria.
- E eu sou amigo de Jesus. Pode especificar qual Maria? - disse um enfermeiro.
- Ele é louco, esqueceu? - disse impacientemente o enfermeiro, que continuava segurando o pacote de loucura, para se ele não se abrise e se espalhasse por todo o prédio de sanidade.
- Santos, Geordani Maria, segundo andar. - disse Pedro, morrendo de raiva.
- Vamos ver as fichas, não custa nada. - disse um enfermeiro, que levantou-se, abriu o mesmo ficheiro que Maria havia aberto.
- A ficha não está aí. Maria tirou, está em cima do ficheiro. - disse Pedro impaciente, mas controlado.
O enfermeiro pôs a mão no alto do grande ficheiro de ferro.
-É verdade, está aqui. Parece que ele não é louco. - disse um enfermeiro.
- Não solte ele ainda. Existem loucos inteligentes. - disse o outro enfermeiro para o enfermeiro que segurava Pedro.
- A maioria deles são. - disse Pedro, sendo novamente ignorado.
Um enfermeiro foi subindo a ladeira branca com corrimão de alumínio.
Minutos depois, Maria aparece, também com as mãos presas pelo enfermeiro.
- Solte-a. - disse o outro enfermeiro.
- Por quê?
- Ela não é louca. É depressiva.
- Você é médico?
- Não. Mas se ela abrir a boca para o pai nós estamos ferrados.
- O pai dela se chama dr. Emílio Médici, e é o dono do sanatório, na verdade é dono de vários.
O enfermeiro soltou logo a jovem mulher, assustado e disse:
- Me desculpe, não diga nada ao dr. Médici. - disse o enfermeiro.
- Ele te queimaria vivo, como um herege - disse Maria divertindo-se.
Depois, vendo o desespero do rapaz, disse:
- Acalme-se, sou uma boa cristã . - disse ela simpática, piscando para o rapaz e deixando-o tranquilo.
- Você conhece ele, Maria? - disse o enfermeiro que segurava Pedro.
- Sim, é meu namorado. Ele pulou o portão e subiu a janela até o segundo andar, não é garanhão? - disse ela olhando cínica e sensualmente para Pedro, que abaixou a cabeça, vermelho de vergonha.
- Isso está me cheirando mal. O que a filha do dr. Médici iria querer com um cara que usa cuecas velhas rasgadas.
-Se você soubesse a quanto tempo não recebo ninguém no meu quarto entenderia o meu desespero. - disse Maria.
Um enfermeiro não aguentou e riu.
Pedro ficou ainda mais vermelho.
O outro enfermeiro disse:
- Deixe que ele volte ao quarto de Maria e vista-se. Depois ela mesma o encaminha ao portão.
O enfermeiro soltou as mãos de Pedro, deixando que Maria o pegasse pela mão e o levasse até seu quarto, no segundo andar.
-Me desculpe, Pedro... - disse ela ao chegarem à porta do quarto.
- Você é uma louca muito inteligente. - disse Pedro, irônico.
-Obrigada. - disse Maria sorrindo-lhe.
Ao entrarem no quarto, Maria fecha a porta e logo depois bate na testa, indicando esquecimento.
- Não tenho roupas de homem.
- Essa camisa é de homem.
-É mais eu só tenho a camisa.
Maria abriu a porta, e minutos depois voltou.
- Disse ao enfermeiro que arranja-se uma calça para você. Não se preocupe.
- Não estou preocupado com isso, estou preocupado com o argumento que você usou.
Maria riu.
- O que aprontou ,Maria? - disse Pedro, suspirando com desânimo.
- Disse que eu estava com tanto tesão a noite passada, que acabei rasgando suas calças com os dentes!! - conclui Maria, morrendo de rir.
- Meu Deus... - disse Pedro, sentado na cama, baixando a cabeça e segurando-a de forma que suas mãos penetrassem os cabelos.
- Relaxa, Pedro! - disse Maria.
-O.K. - disse Pedro, relaxando.
Alguém bateu à porta. Maria abriu. Era um enfermeiro.
- Só conseguimos essa calça no "Achados e Perdidos". - disse o enfermeiro, estendo à Maria uma calça jeans tão gasta que estava quase branca.
- Obrigada. - disse Maria.
O enfermeiro pensou em perguntar onde estavam as calças rasgadas, mas temia dr. Médici mais que tudo. Fechou a porta e saiu andando.
- O que Judite vai pensar ao me ver asssim? - perguntou Pedro, desanimado.
- Vai achar que você é um novo homem - disse Maria.
Pedro vestiu a calça. Maria escolheu uma roupa no bidê e se dirigiu ao banheiro para tirar a camisa que iria dar a Pedro.
Em menos de dois minutos estava vestida.
-Você se arruma rápido para uma mulher. – disse Pedro.
-É porque passo mais tempo pensando. – disse Maria.
- Que tipo de pai prende a filha em um hospício.
-Foi culpa minha.
-Por quê?
-Eu expus minhas ideias, eu quis ser o que eu era.
-Não se culpe. Ser revolucionário é difícil em qualquer sociedade.
- Eu devia fingir que eu era normal, entende? Devia ter sido inteligente, como Galileu foi...
- A voz de Galileu já havia ecoado para todo o mundo. Já era hora de ele se calar.
- Você está certo. Ninguém é capaz de arrancar uma memória.
- E você era só uma menina. Galileu era um velho barbado.
-Isso não importa. O que importa é que minha voz nunca atravessará essas paredes brancas.
Maria começou a chorar.
- Isso me deixa tão triste... – disse Maria chorando.
Pedro pensou, ávido por uma responde que contesse a dor de Maria.
-Você mudou minha vida, e isso eu contarei a todos que eu puder.- disse Pedro
-Obrigada Pedro. – disse Maria abraçando-o.
- Tenho medo de enlouquecer. Não tenho ninguém para conversar e os enfermeiros não me levam a sério. – disse ela soltando-o.
- Você mesma disse que qualquer um pode viver sozinho, lembra?- disse Pedro
- Eu não tinha conhecido nenhum amigo.- disse Maria
Pedro chorou e abraçou-a.
-Fuja daqui! – disse Pedro.
- Não posso. – disse Maria
- Sua mãe vê isso com bons olhos? – perguntou Pedro
-Mamãe morreu. Papai matou-a. – disse Maria
- Ele devia estar preso! – disse Pedro
- Ele esteve preso por seis meses. – disse Maria
- Entendo... – disse Pedro, revoltado e ao mesmo tempo conformado. Esqueceu do que dinheiro significa em um país sem leis.
-Porque culpou ela por quem eu fui e ainda sou, e também porque ela falava demais para o gosto dele. Meu pai é um leão . Faminto. Irracional. Cansado. – disse Maria
-E ele piora com o tempo, não é? – perguntou Pedro
-Como você sabe? – disse Maria enxugando as lágrimas com as costas da mão.
- Já fui um leão. – disse Pedro
Pedro silenciou-se, pensativo.
Magnólia é uma cantora,
compositora, poetisa e escritora brasileira.